domingo, 3 de outubro de 2010

António Manuel Couto Viana - O Ensaísta e o Memorialista

Intervenção do Prof. Doutor Artur Anselmo

“Um seguro e continuado prazer de leitura.” Assim classificou David Mourão-Ferreira o primeiro livro de crónicas literárias de António Manuel Couto Viana, intitulado Coração Arquivista e publicado em 1977. Com efeito, mesmo aqueles que se tinham habituado a admirar em Couto Viana, ao lado do poeta singular, uma entranhada vocação de ensaísta e memorialista, manifestada em episódicas colaborações de jornal e revista, ficaram surpreendidos com a alta qualidade literária e informativa desse primeiro conjunto de crónicas esparsas. Depois, estimulado certamente pela excelente recepção que teve o Coração Arquivista, o autor publicaria sucessivamente As (E)vocações Literárias (1980), Gentes e Cousas d’Antre Minho e Lima (1988), Colegial de Letras e Lembranças (1994) e Escavações de Superfície (1995). Das releituras que tenho feito destes cinco livros, guardo memória de três virtudes comuns a todos eles: em primeiro lugar, a maturidade das observações críticas a propósito dos poetas, ficcionistas e dramaturgos aí evocados; em segundo lugar, a enorme quantidade de notícias (no sentido etimológico de “novidades”) que enriquecem as crónicas breves e memórias avulsas de um grande poeta, fascinado, dir-se-ia, pelo conhecimento íntimo – e, se possível, rigoroso – de outros escritores; por fim, a independência de espírito, a isenção ideológica com que o memorialista discute, esclarece, critica, ressuscita ou reabilita textos alheios, quase sempre para os valorizar e quase nunca para os diminuir.
Fixemo-nos, antes de mais, neste último traço da sua personalidade moral e intelectual. Não há, de facto, na obra ensaística de António Manuel Couto Viana, qualquer vislumbre de ressentimento ou animosidade de carácter ideológico, mesmo quando reafirma convicções pessoais que gostaria de ver menos caluniadas. Trabalhando com textos, é do ponto de vista estético que ele os analisa; estudando figuras literárias, é como analista do discurso poético que lhes interroga os percursos e desvios, em busca da iluminação externa capaz de os tornar visíveis; pesquisando imagens acústicas, dissecando sentidos, rasgando novas perspectivas de análise, é geralmente o esteta que predomina sobre o cidadão do mundo. Pelo muito que tem viajado na estrada larga das letras, das artes plásticas e das artes do espectáculo, aceita-se que a sua opinião de comentador argutíssimo seja, como de facto é, respeitada unanimemente; mas não se lhe peça que entre em polémicas estéreis, que reze missa em capelas literárias, que perca tempo em questiúnculas de campanário, que abandone a sua dignidade de humanista, pois seria o mesmo que pedir-lhe o impossível. Não: em António Manuel Couto Viana não é fácil separar o poeta do memorialista e do ensaísta. Ora, quem tenha acompanhado a sua longa carreira poética, por certo haverá entendido a lição que da leitura dos seus versos se retira: nenhum gemido, nenhum queixume social, nenhuma recriminação contra o mundo dos outros, nenhuma proposta revolucionária, nenhum aceno de mudança, nenhuma promessa de paraíso, antes e só a dura condição do ser, do estar, do ficar, do abrir janelas, do partir, do regressar, do amar, do pensar.
Este Couto Viana que há mais de sessenta anos enobrece a Cultura Portuguesa com o seu trabalho quotidiano, poeta e prosador, tradutor e encenador, colaborador assíduo da imprensa e da rádio, actor e desenhador, animador cultural, organizador meticuloso da obra de seu Pai e de suas Irmãs, é uma destas figuras de excepção que passam a vida a batalhar com as palavras, espalhando à sua volta generosidade, doação e fé. Iniciativas culturais tão marcantes como a revista infantil Camarada, o Teatro da Mocidade Portuguesa, as folhas de poesia Távola Redonda, as revistas Graal e Tempo Presente, o Teatro do Gerifalto e a Companhia Nacional de Teatro, qualquer delas lhe ficou a dever, no todo ou em parte, o melhor da sua devotada abnegação. Foi, para os colegas da sua geração, um companheiro exemplar, pronto a despertá-los para as tarefas colectivas que poeticamente evocou na sua “canção de ronda”:

Poetas: vamos dar as mãos! De novo
Se escute em nós uma canção de ronda.
Poesia – única távola redonda
Com pão e vinho para todo o povo.

Quem tiver sede, beba deste vinho.
Quem tiver fome, coma deste pão.
Só o poeta vivo é nosso irmão;
P’ra ele, nada é fim, mas sim caminho.

Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé.
Flori com elas vossa botoeira:
A voz do poeta é pura e verdadeira
Se – em Deus? em si? nos outros? – sonha e crê.

As gerações seguintes, que nele viram um mestre, logo o tiveram como amigo. E quando, em época particularmente dolorosa para um país de brandos costumes, se desfraldaram as bandeiras do ódio e se impôs por toda a parte a linguagem da violência inútil, Couto Viana dirigiu a um dos mais jovens e talentosos poetas de então (Rodrigo Emílio) versos de acentos épicos que mais pareciam apóstrofe em louvor da resistência e ordem de comando para a reconquista espiritual de uma terra exausta de sofrimento. Intitulavam-se “Para hoje” e constituíam o último poema do livro Nado Nada, editado em 1977:

É preciso ficar aqui, entre os destroços,
E cinzelar a pedra e recompor a flor.
É preciso lançar no vazio dos ossos
A semente do amor.

É preciso ficar, aqui, entre os caídos,
E desmontar o medo e construir o pão.
É preciso expulsar dos cegos dias idos
A insónia da prisão.

É preciso ficar, aqui, entre os escombros,
E libertar a pomba e partilhar a luz.
É preciso arrastar, pausa a pausa, nos ombros,
A ascensão de uma cruz.

É preciso ficar, aqui, entre as ruínas,
E aferir a balança e tecer linho e lã.
É preciso o jardim a envolver oficinas:
É preciso amanhã.

Com os poetas e escritores da sua idade, António Manuel Couto Viana repartiu o pão e o vinho da poesia; com os mais novos, repartiu poesia e sofrimento. Ponte entre duas épocas tão diferentes (a do ser e a do ter, a do homo viator e a do homo mercator), ele teve ainda, como raros poetas da sua geração, a premonição do fim, não de um fim escatológico, mas do fim puro e simples de um tempo histórico que começara com Gomes da Costa e acabaria com Costa Gomes. E em tudo isso – sabemo-lo hoje – houve não somente uma troca de nomes, mas sobretudo uma troca de idades. Camões, no seu tempo, pudera assistir a algo de semelhante, e por isso avisara a posteridade de que “tudo na vida” era “composto de mudança”. Fugaz consolação para quem vê fugir-lhe a terra debaixo dos pés e teima em seguir em frente.
Mas há paradoxos que são próprios dos tempos do fim. Um deles – representado na Época Clássica por um Sócrates, um Cícero, um Séneca – consiste na consagração que, em todas as épocas de mudança, se testemunhou a esses pontífices (ou “arquitectos de pontes”, para sermos fiéis ao sentido original da palavra). Passada a euforia da mudança, à volta deles estabelece-se uma espécie de unanimidade, como se, por sedimentação e superação das antinomias desencadeadas pelo choque de um tempo de fractura com um tempo de mudança, chegasse a hora de lhes fazer justiça. Dou comigo a pensar em Álvaro Cunqueiro, sem dúvida a imagem mais clara de unanimidade espiritual da Galiza contemporânea, e não resisto a associar-lhe o nome de António Manuel Couto Viana, pois ele representa hoje, para as gentes do Alto Minho, o que Cunqueiro vale para a Galiza: um símbolo de sabedoria ancestral, cada vez mais libertado da contingência temporal, do acessório, do passageiro. E há afinidades evidentes entre o criador de Merlin e o profundo conhecedor das Gentes e Cousas d’Antre Minho e Lima: Cunqueiro começou a falar da Galiza nova quando só havia Galiza velha e forjou a sua visão renovadora na mais remota identidade goda e celta, o que lhe vale ser hoje a própria imagem simbólica da autonomia cultural galega; Couto Viana, sem precisar de remontar tão alto, entregou às gentes da sua terra natal, além dos melhores poemas vianenses que alguma vez se escreveram, o mais completo roteiro de pesquisas literárias acerca de escritores do Alto-Minho. Por isso, como Cunqueiro, tem Couto Viana recebido, nos últimos trinta anos, em todo o distrito cuja capital incorpora no seu próprio nome civil e literário, provas categóricas e sobejas de uma unanimidade (direi mesmo, de uma popularidade) que toca as raias da fama. Depois de António Feijó, de João Verde, de Pedro Homem de Mello e de António Pedro, não há hoje no Alto-Minho figura intelectual tão respeitada e tão venerada.
E como tem respondido Couto Viana a esta popularidade quase demiúrgica? Da forma mais correcta e mais afeita ao seu temperamento: estudando, comentando e divulgando escritores alto-minhotos nos seus trabalhos de ensaísta e memorialista. Para me ater apenas aos principais, lembrarei aqui as páginas que tem dedicado a Sebastião Pereira da Cunha, António Feijó, Abílio Maya, João da Rocha, Salvato Feijó, João Verde, António de Cardiellos, Júlio de Lemos, Teófilo Carneiro, Carlos Lobo de Oliveira, Sandy, Ernesto Sardinha, Pedro Homem de Mello, Tomaz de Figueiredo, António Pedro e Álvaro Feijó. Lembro-me bem (já lá vão mais de cinquenta anos) do entusiasmo com que o meu saudoso avô – Júlio de Lemos – falo dele como Sardinha falava de Garrett, e com o mesmo enternecimento – elogiava uma nota de António Manuel Couto Viana acerca de António Feijó, publicada no 1.º número da revista Tempo Presente, em 1959, ano do centenário do nascimento do poeta das Bailatas. “Foi o melhor artigo que se publicou sobre Feijó nestas comemorações” – sublinhava Júlio de Lemos, a quem, como é sabido, não escapava uma linha que se escrevesse a propósito do maior poeta limiano do seu tempo.
Mas seria imperdoável confinar apenas aos escritores do Alto-Minho as contribuições inovadoras de Couto Viana para o estudo e análise de figuras e temas da Literatura Portuguesa. Nas minhas leituras sobre Cesário Verde, por exemplo, não me ocorre que alguém tenha escrito um texto tão escorreito e tão completo como aquele que Couto Viana dedicou ao poeta do “Sentimento de um Ocidental”. Curiosamente, tal como o estudo sobre Feijó, também este trabalho se destinou a assinalar um centenário: o da morte de Cesário, em 1986, pretexto para uma palestra em Macau, cujo texto seria recolhido no livro Colegial de Letras e Lembranças.
Já que me lembro aqui os estudos de Couto Viana em torno das obras de Feijó e Cesário Verde, talvez venha a propósito referir a especial capacidade do ensaísta para iluminar textos de poetas – uns de boa cepa parnasiana, outros de pendor simbolista – a que se aplica o estafado estereótipo de “ourives do verso”. Aliás, diga-se entre parêntesis, a própria poesia de António Manuel Couto Viana tem sido considerada por alguns críticos, no seu aspecto meramente formal e estilístico, como herdeira legítima do lirismo dos parnasianos, sem dúvida detentores da maior parte das jóias que se guardam nas ourivesarias de Apolo. De facto, coincidência ou não, lá estão, nos ensaios de Couto Viana, admiráveis interpretações de poetas tão geneticamente aparentados como Antero, Junqueiro, João de Deus, António Fogaça, Conde de Monsaraz, Fausto Guedes Teixeira, António Sardinha, Alfredo Serrano, António Patrício, Alfredo Pimenta, Judith Teixeira, Mário Beirão, Camilo Pessanha, Bernardo de Passos, Américo Durão, Cândido Guerreiro, Afonso Duarte, Florbela Espanca, Fernanda de Castro, Cabral do Nascimento ou José Régio. A lista poderia ainda incluir poetas do saudosismo como Teixeira de Pascoaes, António Correia de Oliveira ou Afonso Lopes Vieira, os dois últimos objecto de atenção tão minuciosa que parece corresponder a uma constante do pensamento crítico de Couto Viana.
Talvez não seja arriscado afirmar que na predilecção manifestada por estes poetas está implícita uma ideia supra-literária, com a qual Couto Viana se identifica totalmente: a ideia de Portugal. É que, à semelhança de Gonçalo Mendes Ramires de Eça de Queirós, também a vida e a obra de António Manuel Couto Viana são indissociáveis da ideia que todos fazemos, cada um a seu modo mas sem fendas que nos separem, sem barreiras que nos dividam, desse ente no seio do qual respiramos vida: dessa divindade que nos religa ao transcendente de cada dia, de cada pensamento: desse sopro, dessa aura, desse vento a que chamamos – ainda chamamos – Portugal.

Artur Anselmo