domingo, 3 de outubro de 2010

A Poesia de António Manuel Couto Viana

Intervenção do poeta limiano Cláudio Lima

Se desci do Minho para vir falar neste auditório sobre a poesia de A. M. Couto Viana, precisei de apelar às melhores reservas de coragem e de silenciar avisados ditames interiores, que me impunham a evidência da inadequação ao desafio proposto; precisei de invocar razões do coração que legitimassem tão temerária ousadia. É que venho falar de um grande poeta que sendo português e universal na envergadura, também é minhoto e limiano de vivências, de afectos, de memórias. Também ele sentiu a atracção irresistível e inspiradora das “leteas agoas” do Lima, cantadas por Diogo Bernardes; desse “rio saudoso todo cristal” que flui na poesia de António Feijó. Na ausência de outras credenciais, esta afinidade e esta cumplicidade me justificam.
Um grande poeta português, não do séc. XX / princípio do séc. XXI, mas de sempre. Porque a grande poesia, como de resto toda a arte superior, é intemporal; nenhum tempo a retém, a limita, a condiciona. Um grande poeta com um longo percurso sem hiatos nem desvios, consubstanciado em mais de sessenta anos e cerca de cinquenta títulos, contando com recolhas antológicas e obras infanto-juvenis. Seguramente, um dos casos mais fecundos de toda a bibliografia poética portuguesa, veiculando e enriquecendo o nosso mais lídimo lirismo, aquele que vem dos Cancioneiros, se sublima em Camões e se enriquece posteriormente com uma plêiade de vates tais como, entre outros, Afonso Lopes Vieira, Pascoaes, Pessoa e Miguel Torga.
Que poderei dizer mais do que breves generalidades na escassez de tempo que esta cerimónia me impõe? Mesmo que me não faltassem substanciais capacidades para o efeito — que faltam — este espartilho me condicionaria sempre, porque uma grande obra é como um grande rio alimentado por grandes afluentes, que são as obras que sustentadamente a ampliam e enriquecem. Assim, vou falar-vos sucintamente dos dois vectores que, em meu entender, mais vincadamente caracterizam a poesia de Couto Viana: o lirismo intimista e o misticismo pátrio: o coração e a espada.
Começarei por ousar dizer que a poesia de Couto Viana, na sua vertente intimista, tem algo do presencismo humanístico-religioso de um José Régio e na assumpção dos valores histórico-patrióticos vai beber à fonte límpida do saudosismo pascaoleano, muito raramente se dessedentando nas revoltas águas neo-realistas. Mas, atenção: se esta análise tem algo de enviezado e arbitrário, fique bem claro que, com ela, não pretendo colar ao grande poeta rótulos inapropriados e redutores. Não; o autor de O Avestruz Lírico, se nunca meteu a cabeça na areia, indiferente ao que se passava à sua volta, também nunca se submeteu nem se deixou embalar, passiva e a-criticamente, a e por sedutoras vozes que de algum modo pudessem silenciar ou subverter a originalidade e singularidade da sua.
Poder-se-á afirmar que a poesia de Couto Viana — como, aliás, muita da sua prosa memorialista — vai beber à infância o tónus de um lirismo límpido e marulhante:

“Ir-me ao livro do destino
E lê-lo todo ao invés,
Pra ser menino
Outra vez”

— escreve em O Avestruz Lírico; colhe na mocidade a irreverência e o entusiasmo afirmativo:

“Podem pedir-me, em vão,
Poemas sociais,
Amor de irmão pra irmão
E outras coisas mais:

Falo de mim — só falo
Daquilo que conheço.
O resto… calo
E esqueço”

— lê-se na mesma obra; para, na idade adulta e provecta, serenamente, vivenciar e aprofundar os grandes enigmas da vida, do destino e da morte, numa perspectiva de espiritualidade cristã, mesmo se e quando, aqui e ali, cometendo pequenas heresias e atropelos canónicos próprios de um poeta emotivo, rebelde, às vezes paradoxal:

“O meu pecado é arrastar na vida
A maldição pagã
Que me tornou proibida
A maçã”

— revela ele em Restos de Quase Nada e Outras Poesias.
O amor e a amizade, a saudade e a fé, o aqui e o além, — eis os valores que Couto Viana fiel e continuadamente tem cultivado, na vida e na literatura, sobremaneira evidenciados num exemplar registo poético, que concilia modernidade com tradição.
Assume-se Couto Viana um cidadão e artista católico, monárquico e nacionalista, na fidelidade a princípios e valores bebidos no seio familiar e reforçados ideológica e idealisticamente, numa tradição que se foi revigorando com a intervenção de muitos e consagrados de seus pares. Se tal posicionamento é transversal em praticamente toda a sua obra, poética ou não, ele assume especial relevância em livros como Pátria Exausta, Nado Nada, Ponto de Não Regresso, Prefiro Pátria às Rosas. Recorrente, sobretudo, a lúcida consciência envolta numa angústia acerada de uma “pátria exausta” nas suas virtualidades e ideais, na sua identidade perdida, na “inversa navegação” (Sophia) das caravelas ante o esboroar do império.

“Foste, às praias doutrora, ver partir um navio?
Vai vê-lo regressar, sem glória, aos aeroportos.
Antes fosse vazio e viesse vazio
Mas nas entranhas traz cinco séculos mortos.”

— lê-se em Nado Nada. E mais à frente:

“Este mendigo, outrora, era um menino d’oiro,
Teve um Império seu, mas deixou-se roubar.
Hoje, não sabe já se é castelhano ou mouro
E vai às praias ver se ainda lhe resta o mar!”

Para, alfim, concluir, páginas adiante:

“Agora, o meu país são dois palmos de chão
Para uma cova estreita e resignada.
Tem o formato exacto de um caixão.”

Alinhe-se ou não pelos seus ideais, ideias e sentimentos — e nunca o unanimismo e seguidismo acéfalos deram grande resultado, fosse em que domínio fosse — é de reconhecer em Couto Viana, seja na conduta do cidadão, seja no percurso do poeta e escritor, um carácter indefectível, uma postura íntegra, coerente, fidalga. E por isso ele pôde, nos mais recentes livros, assim se auto-avaliar:

“Veio o mundo perverso
Achou-me em cada verso
Lírico, heróico, exacto”
(Restos de Quase Nada e Outras Poesias, 2006);

e, desafiando o porvir:

“Os versos finais
Podem ser, talvez:
Morreu entre os poetas imortais
O último poeta português.”
(Disse e Repito, 2008).

Para, numa confissão só possível a espíritos superiores, de contas acertadas com a vida, confessar estoicamente:

“Só troçando da dor
Sou capaz de viver.”
(Ainda Não, 2010).

Bem andaram a CCPL e a revista LIMIANA, dois espaços dinâmicos e abertos de convívio e cultura da comunidade limiana em Lisboa, em promover esta homenagem e conferir esta distinção à mais alta personalidade literária da nossa região. Nas pessoas de seus Presidente e Director, Sr. João Gonçalves e Dr. José Pereira Fernandes, respectivamente, aqui deixo o meu caloroso aplauso. E ao meu estremado amigo e mestre António Manuel, permito-me corrigir-lhe uns versos de O Coração e a Espada que dizem

“A homenagem a um poeta que morreu
É decorar-lhe os versos”

para:

A homenagem a um poeta que não morre, é decorar-lhe os versos.

Eu prometo!

Cláudio Lima