quinta-feira, 14 de outubro de 2010

António Manuel Couto Viana - Que descanse em paz na imortalidade

António Manuel Couto Viana, em 12 de Setembro de 2009
Fotografia de José Pereira Fernandes 
No Dia de Camões deste ano de todas as crises de 2010, o Poeta António Manuel Couto Viana regressou à sua cidade. Fez a derradeira viagem de Lisboa até à Princesa do Lima, sozinho, a dizer com os seus botões:

«Não suporto nenhum se
(O coração não duvida)
E vou-me embora antes que
Me adiem mais a partida.»


Chovia mansamente. Ninguém estava à sua espera e só as luzes adormecidas da cidade tremeluziram num aceno de boas vindas. Recebeu-o o silêncio, que é quem melhor sabe, na sua infinita sabedoria, que os poetas não morrem. Nunca.
No dia seguinte, sexta, era dia de feira. Pela manhã, abriu-se a igreja de S. Francisco da Ordem Terceira e, num trono de flores que de Lisboa trouxera, numa urna sóbria e desnuda, onde nem uma bandeira da terra, que tanto amou e cantou, houve o discernimento de alguém colocar, para quebrar a frieza, o Poeta repousou. Chegavam amigos, esparsos, traziam mais flores e paravam a olhar a sua fotografia, que era a da capa da revista Limiana que dias antes o homenageara, e ali ficavam, concentrados. Numa oração ou numa recordação. E o Poeta, no seu silêncio, lembrava-lhes versos antigos:

«Quando morrer não envelheço mais.
Vou ficar tal qual sou
Vou, já podre o fruto
Do pomar que eu era.
Não quero luto:
Volto na Primavera.»


Os poetas não morrem. Voltam sempre com as cerejas. Ainda não eram quatro da tarde chegaram mais, muitas pessoas. Silenciosas, olhar distante, roupa escura, a encher os bancos da nave daquele negro-cinza que é cor de tristeza. E uma música suave começou a esvoaçar por cima das lágrimas das palavras que do silêncio se desprendiam. A missa era a do Sagrado Coração, o que só pode ter sido de propósito, pois coração é a palavra consagrada que em toda a obra do Poeta mais se repete:

«Entre o pecado e o perdão,
Chamando a tudo o que me inspira
Memorial do coração.»


Os poetas não morrem. Finda a eucaristia, o padre Armando Rodrigues deu a palavra a um historiador e crítico literário, mestre na sabedoria que a amizade inspira, para falar do Poeta. Alberto Antunes Abreu falou de cor, com a linguagem erudita que nasce na biblioteca da alma, onde a engrenagem das palavras se constrói ao ritmo do coração. E afirmou, peremptório, que António Manuel Couto Viana era o maior Poeta vivo daquela Ribeira Lima, pois vivo continuará sempre, porque os poetas não morrem.
Finda a sua notável oração, Alberto Abreu leu três telegramas. Primeiro, do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, que saudou o «escritor e homem de teatro que muito enriqueceu a cultura portuguesa», a quem prestou «sincera homenagem»; depois, do presidente do Conselho de Administração da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria, que homenageava o «artista e poeta»; e, por fim, da Ministra da Cultura e do Secretário de Estado da Cultura, em nome do Governo e em nome pessoal, expressando a «maior consternação pelo falecimento do poeta, ensaísta e dramaturgo António Manuel Couto Viana, cujo percurso profissional, erigido com profunda dedicação, muito contribuiu para o desenvolvimento e promoção da cultura portuguesa, particularmente das artes cénicas.»
A concluir, o orador, para proclamar a imortalidade do Poeta, convidou cinco pessoas que iriam ler os seus versos: Dantas Lima, Ricardo de Saavedra, Vítor Pi, Flora Silva e o neto do escritor, o actor Juan Gabriel Soutullo. Todos os poemas foram coroados com salvas de palmas, especialmente o último, pois Juan Gabriel anunciou com comovida emoção as razões que o levaram a decorar aquele que considera o mais bonito poema de seu avô. Razões do coração que o coração, chorando, explicou.
Pontos altos da cerimónia foram igualmente as intervenções da Academia de Música Fernandes Fão de Ponte de Lima – Âncora, com interpretações de aprimorado recorte.
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Bem-haja a Câmara limiana por se ter lembrado de homenagear a Cultura com tão carinhosa manifestação cultural.
Entre a assistência destacavam-se os presidentes dos municípios de Viana e Ponte de Lima, bem como os respectivos vereadores do pelouro da Cultura, a presidente da Assembleia Municipal vianense, o secretário da Junta da Meadela e o presidente da Casa das Artes de Arcos de Valdevez. Também deram nas vistas a numerosa representação da Confraria de Gastrónomos do Minho, com capas de cerimónia e medalhas (fundada há precisamente 25 anos e da qual Couto Viana foi o primeiro Juiz), várias lavradeiras da Ronda Típica da Meadela em traje de dó, e muitos familiares e amigos que de Lisboa, do Porto, da Galiza e de outras distantes localidades se deslocaram à igreja da Ordem Terceira para um último adeus ao escritor.
Os poetas nunca morrem, porque vivem nas suas obras eternamente. Mas, como frisou Alberto Abreu, há necessidade de antecipar o futuro, distribuindo pelas crianças das escolas a poesia que ensinará a amá-los. Ou, como o nosso Poeta dizia,

«na tragédia do solitário
Que de si próprio se escondia», há que
«Tirar-lhe o esqueleto do armário
E libertar-lhe a poesia.»


Do espólio de A. M. Couto Viana constam diversas obras inéditas. Uma delas é a História da Companhia Nacional de Teatro, pronta para o prelo; outra é um livro de poesia Jardim Secreto e Sagrado, baseado no esotérico jardim que seu filho Juan Soutullo construiu na casa de Sintra; há ainda novo volume de contos, com o (provável) título O Chamariz dos Homens, que a editora Opera Omnia promete para Janeiro próximo, aquando do aniversário do escritor; noutra editora existe há meses um livro de crónicas e ensaios, Estante Reservada; primorosamente ilustrado por Vítor Pi, aguarda publicação o livro de poesia infantil Se gostas de animais cresces mais; também sobre a sua poesia orientalista, com prefácio de Rodrigo Emílio, foi confiado à Fundação Oriente um volume que aguarda algures a luz do dia.
Logo após o seu falecimento, a Texto publicou a segunda edição de Versos de Cacaracá, ilustrada por Vasco Gargalo. Finalmente, pronta para a impressora está a sua biografia, na qual o poeta e dramaturgo se empenhou até exalar o último suspiro, urdindo comigo um encantatório colar de lembranças: demos-lhe o título Memorial do Coração – Diálogo a quatro mãos.
Inolvidável homenagem será sem dúvida, e sobretudo, tirar, urgentemente, estes livros da gaveta. Para que nunca se cumpra a altiva ironia da última quadra deste seu Epitáfio:

«os versos finais
Podem ser, talvez:
Morreu entre os poetas imortais
O último poeta português.»


Os poetas não morrem, é sabido. Embora, às vezes, alguns teimem em pretender matá-los. Que António Manuel Couto Viana descanse em paz, na sua imortalidade. Ámen!

A INFAUSTA NOTÍCIA

Falecido no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, na terça-feira, 8 de Junho, pelas 15h30, onde se encontrava hospitalizado há três semanas com problemas que se agravaram ligados à doença que já o levara à amputação de uma perna e que ultimamente lhe atacavam a outra, António Manuel Couto Viana tinha 87 anos de idade. Natural de Viana do Castelo, aí estudou no Liceu de Gonçalo Velho e depois em Braga até 1946, quando teve de acompanhar a família para Lisboa. A sua carreira foi sempre dedicada à cultura, muito especialmente ligada à poesia e ao teatro, tendo-se distinguido como dramaturgo, ensaísta, memorialista, gastrólogo e autor de livros para crianças.
A infausta notícia correu de imediato por todo o país. Seu corpo ficou depositado em Lisboa, na casa mortuária da paróquia da residência que fora da família, na Igreja de Fátima, durante a quarta-feira, dia 9, por onde passaram centenas de pessoas ligadas ao teatro e às artes em geral, autores, editores, livreiros e figuras públicas, além de familiares e muitos amigos. Como fora sua vontade, a missa de corpo presente foi rezada por um franciscano, o padre Henrique Campos, director da Livraria Franciscana de Cedofeita, no Porto.
Transladado para Viana, ficou depositado na Igreja da Ordem Terceira, sendo as exéquias na tarde do dia seguinte. Aí compareceram o então o Bispo de Viana, D. José Augusto Pedreira, além de outras entidades, familiares, amigos e admiradores. A missa do 7.º dia foi rezada em Lisboa e a do 30.º em Viana.

A última homenagem em vida foi-lhe prestada em Lisboa, em 17 de Abril, pela Casa do Concelho de Ponte de Lima, de que era Sócio Honorário, e pela Limana, revista que António Manuel Couto Viana privilegiou com o seu talento e inultrapassável dedicação desde o segundo número, com a publicação da Oração de Sapiência proferida na Cerimónia de Entronização dos Confrades da Confraria Gastronómica do Sarrabulho à Moda de Ponte de Lima, realizada em 21 de Abril de 2007.
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Nessa homenagem, presidida pelo Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Ponte de Lima e realizada no auditório do CITEFORMA, na Avenida Marquês de Tomar, a poucos metros daquela que foi a sua residência durante décadas, foram proferidas conferências pelo poeta limiano Cláudio Lima, pelo ensaísta e crítico literário João Bigotte Chorão e pelo Prof. Doutor Artur Anselmo, publicadas integralmente no n.º 18.º da Limiana, e que constituem valiosos contributos para o estudo da vida e obra deste consagrado escritor português.

Ricardo de Saavedra
In: “Limiana – Revista de Informação, Cultura e Turismo”, n.º 19, Outubro de 2010.